“Aconselho qualquer jovem trompetista a não fazer o que eu fiz, porque este estilo pode ser prejudicial à saúde”. Recomendou, provavelmente ironicamente, aos futuros músicos, o trompetista Freddie Hubbard, morto no antepenúltimo dia de 2008. Recomendo exatamente o contrário. Explico. Antes, um breve divagar.
Quando Hubbard estreou, no final da década de 50, o jazz já era um ritmo disseminado nos Estados Unidos; algumas das principais correntes, swing, bebop, cool, já haviam surgido e era a vez de um estilo que fizesse um contraponto ao establishmentde Miles Davis, aproveitasse outras influências como o funky e o gospel e reagisse ao surgimento do rock’n’roll. Daí surgiria o hardbop, personificado no grupo Jazz Messengers, criado pelo baterista Art Blakey. Um estilo que traria em suas composições andamentos diferenciados, um pouco mais rápidos e intensos que o bebop, mas, em muitos casos, mais simples que os acordes de Charlie Parker e valorizava a presença de solistas como o baixista Charles Mingus com o seu The black saint and the sinner lady, o indomável pianista Thelonious Monke principalmente John Coltrane com o cultuado Giant steps. Basta ouvirmos este último, para termos uma noção de como o jazz modal poderia chegar ao status de uma polifonia agradável, assimilável e renovadora.
Hubbard tocou por quatro anos com Blakey e já demonstrava que seu estilo comedido, temático e ao mesmo tempo expansivo e variável, “exuberante” nas palavras de Wynton Marsalis, conquistaria vários seguidores. Suas gravações com o pianista Herbie Hancock, pioneiro na renovação do jazz a partir da soul music, em especial em Empyream Isles (1964), confirmaram ainda mais a idéia de que surgira mais um músico que faria jus ao panteão que lhe havia precedido. A música Canteloupe Island, que traria todas as novas influências do hardbop, é uma síntese desse momento.
Na década de 70 o trompetista gravaria seus principais álbuns solo. Em um deles está a música que batiza o mesmo, Red Clay. É com Red Clay que podemos entender o estilo a que se refere Hubbard no início deste texto. No disco, há duas versões e elas servem exatamente para compreendermos como o jazz foi, em variados momentos, o único estilo musical capaz de valorizar a música como artefato de valor imanente, contemplativo e não apenas como reconhecimento e compensação.
A primeira versão da música é a de estúdio. Andamento mais lento, tema conduzido perfeitamente com uma introdução forte de metais e bateria (Lenny White), uma exposição temática e um desenvolvimento com uma seção rítmica que segue em conjunto com o chorus e solos dos músicos (nada menos que Herbie Hancock, Ron Carter, baixo e Joe Henderson, sax tenor) até à recapitulação.
A segunda versão é ao vivo. Com 18 minutos, sete a mais do que a primeira, foi uma imposição da gravadora e, ironicamente, se tornou um dos melhores exemplos da capacidade do jazz em se diferenciar da repetição musical e de como o tocar ao vivo proporciona a essa música possibilidades inauditas em outros estilos que, tecnicamente frágeis, não têm muito o que fazer diante da plateia. A música ganha em intensidade e virtuosismo, principalmente pela participação de George Bensonna guitarra e pelas variações melódicas do próprio Hubbard. Cada músico executa seu improviso, mas, ao contrário da primeira versão, várias notas se modificam e em alguns casos a melodia é bastante diferente da versão anterior, em especial no sax de Stanley Turrentine e na participação vigorosa da bateria de Billy Cobham que, aos 12′:12″, parece explodir o bumbo anunciando o clímax final. E, ao final, com seu trompete, Freddie Hubbard nos diz: “this is my style“.
Já escutei Red Clay dezenas de vezes. É um clichê, eu sei, mas sempre identifico algo novo e sempre sinto algo diferente em relação à música. Não há reconhecimento puro e simples de uma melodia que agrada ou de um relaxamento que compense o cotidiano. Vai além disso. Suscita, mesmo naqueles que não entendem nada de teoria musical, novas formas de ouvir, de percepção. Como é próprio de determinado jazz, Red Clay “explode” um tipo de sensação na qual estranhar se tornou ameaçador. Se você gosta de algo mais reconhecível (ah, a metáfora do espelho!), vá escutar algo como Kenny G, o eterno retorno do nada, ou o resto da covarde vulgata musical, essas músicas de 15 anos (frase cunhada por um amigo), idade muito acima da idade mental dos tigres das cidades.
Recomendo aos jovens que sigam o estilo de Hubbard. É original sem ser pedante, é renovador sem ser impenetrável, é assimilável sem ser gratuito. Platão (que temia a arte) dizia que a poiesis é a verdadeira recriação do mundo através de formas inexistentes, como o escultor faz com a argila; antes disforme, ele, com seu trabalho, engendra uma nova realidade. A argila (clay) de Freddie Hubbard engendra uma nova forma de relação com os sentidos, com nós mesmos, com a realidade, que precisa ter forma, sentido, harmonia, intervalos, variações, estilo.
Meu caro professor Relivaldo,A ausência de Freddie Hubbard não deixa apenas mais um silêncio no jazz. Na verdade, aqueles que – como nós – têm uma fruição diferente da grande maioria estamos cada vez órfãos musicais. Em meio a tantos comentários superficiais encontrados na imprensa generalista, o teu texto faz-me ser grata à internet.
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Estamos na era dos piores estilos e interesses musicais que já existiu. Nada como Hubbard (em especial), Dizzy, Miles, Chet, Morgan, para nos mostrar a versatilidade, fluidez e inigualável época em que viveram e que certamente foram as melhores.É relevante ressaltar que uma das primeiras influências de Hubbard foi Chet Baker – com seu estilo cool – juntamente com Dizzy, Miles, deu iníco ae estilo hardbop, por excelência,até mesmo o próprio fusion.Hubbard havia um estilo virtuoso próprio para tocar seu moderno trompete e executar seus longos improvisos. Acho que esses músicos iniciantes, precisam de inércia e um encostamento para mantê-los. Relivaldo, parabéns pelo maravilhoso texto (isso não é novidade) e que fez-me acrescentar mais informações – verdadeiras – sobre o fantástico Freddie Hubbard. Lorena Figueiredo
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Li e gostei. Muito melhor que Paulo Coelho.Parabéns! Voltarei por aqui sempre que tiver texto novo.Abraço,Glauber
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Pô, também és um crítico de música fudido, né bicho??? hehehehehehehApesar de não entender muito do gênero, sei o que esses caras têm de valor para a música. Um dia, vou ouvi-los!
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